segunda-feira, 13 de abril de 2015

                   ...
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que rsgataria
o abandono, todo o abandono

José Tolentino Mendonça



mil vezes larguei as sandálias ao  pé das raízes do que fomos
mil vezes descrevi os pássaros das margens
que voavam em círculos sobre a loucura.
tantas outras    na maioridade das estações
com a saliva aflita dos sentidos
rasurei a negrito os espólios da linguagem pronunciada.

por essa altura
os homens à beira dos 4o abandonavam-se à ilusão da cidade.
desciam a rua com a metade da sua solidão deitada à vida
e a outra metade
[ de uma possível alegria]
a pedir filhos ao futuro.

pobres de nós   aves permanentes de um céu cego
filhos de um verbo inconfidente
no centro oficioso de uma  póstuma voz.
dedicadamente sobreviventes
divididos pela mesma noite sem febre
juntos no desamparo desta sombra deslizante no seu reflexo.

já é tarde para nos empenharmos a descodificar
o que vive sob a língua.
a vida consome-se  no espaço cada vez mais exíguo
das breves felicidades.


e eu já te disse adeus mil vezes.
no silêncio mais puro que assedia as últimas metáforas.
o silêncio que não escreve a nossa morte.


foto anke. merzebach

9 comentários:

Luis Eme disse...

as tuas palavras estão sempre cheias de despedidas...

deve ser por isso que vais e vens, dando quase uma "volta ao mundo", sem te preocupares em espantar as marés...

abraço Luisa

Graça Pires disse...

"mil vezes descrevi os pássaros das margens
que voavam em círculos sobre a loucura."
Uma beleza de poema, minha querida amiga. Que bom teres voltado.
Mais de mil vezes te pedi que o fizesses, lembras-te? Tinha saudades de te ler neste registo tão do jeito de quem sabe manejar as palavras...
Um grande beijo.

Jaime A. disse...

Sinto-me muito feliz por ser o primeiro a comentar, mas tal como indicava: "Sem comentários".

Sinto-me tão próximo destas palavras, quase que me sinto tentado a continuar este poema. As suas palavras estendem-se indefinidamente como os raios de sol que doiram as vidraças.

Muito obrigado pela partilha.

Mar Arável disse...

Os pássaros sempre voltam

a fingir de pássaros
mas voltam

Bj

Lídia Borges disse...


Como posso ter sido longe destas "Marés de Espanto".

Feliz por tê-las encontrado para poder deglutir sílaba a sílaba este dizer encanto.

Um beijo

Lídia

Casa Très Chic disse...

Luísa,
fiquei feliz por ter passado pelo meu blog, assim pude conhecer o seu - você é uma grande poeta, parabéns, suas palavras são profundas e tocam os corações dos que tiverem a sorte de chegar por aqui.
Abraços do Brasil,
Tereza

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

a despedida sem o ser....a memória em carne viva, a poesia viva

que belíssimo poema

:)

lupuscanissignatus disse...

a migração da semente

Jaime Portela disse...

Há mortes impossíveis.
Que nem mil adeuses conseguem materializar.
Por isso, talvez nunca seja tarde para nada.
E, passados 9 anos, não foi tarde para eu ler este excelente poema.
Boa semana.
Beijo.

Continuo a recuar, se não publica novos poemas ainda me arrisco a bater no fundo...